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A Arte Política de Limpar Privadas
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A Arte Política de Limpar Privadas

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Everybody scatter, scatter
Some people lost some blood
Someone nearly die
Colonial mentality
Eu não sou daqui
Eu não tenho nada
Tristeza não tem fim
a felicidade sim
Meu coração é a liberdade
Marisa Monte - Música de Marisa Monte

O mundo seria um lugar melhor se cada um limpasse a sua própria merda. 

Existem coisas que têm um custo cívico alto, e terceirizar a nossa responsabilidade na hora de limpar a própria sujeira é uma delas. 

Não estou falando apenas das nossas fezes - o que com algumas excessões, espero que a gente não esteja terceirizando. Minha questão aqui é com o cuidado com a nossa casa e, por consequência, com a nossa rua, a nossa cidade e o nosso país. 

Pois… 

… Uma vez escutei um causo de uma pessoa recém mudada para a Europa. Ela estava tentando explicar a sua sogra inconformada que, ela (a pessoa) sofria de alergias sérias, por isso o companheiro estava incumbido de realizar a maior parte do "trabalho sujo". 

Foi aí que a sogra arrematou: AQUI, chèrie, cada um limpa a sua própria merda. 

Sogra agressiva, intrometida, levemente xenofóbica? Sim, certamente. 

Mas existe um ponto válido na sua grosseria. 

Pode ser loucura minha, mas tenho a sensação de que boa parte dos nossos problemas estruturais - aqueles com relação a divisão de renda, sexismos mil, racismo etc. vem um tanto dessa loucura de ter como "modo default" estar sempre procurando alguém para "limpar a nossa merda".

A vida é muito mais feliz quando todos contribuem com a limpeza. Uma mágica cívica acontece quando estamos juntos focados no objetivo comum de manter uma casa cuidada e limpa.

Cada um limpando a sua merda. 

Para começar, o cuidado com a casa é um ato que nos empodera. Nos faz senhor de nossa morada.

No lugar de pensar: QUEM pode resolver isso para mim, você começa a pensar como EU posso solucionar isso. Somos sujeito.

Depois, aquele cuidado se transforma em um carinho com aqueles que co-habitam o mesmo espaço. Todo mundo se cuidando (via tarefas domésticas); existe um reconhecimento, um laço criado pelo trabalho.

Uma pessoa que nunca limpou uma privada não sabe do amor, e às vezes da força psicológica, necessária para limpar os rastros sanitários alheio. 

Assim, no lugar de agir no mundo contando com um terceiro, que está ali para limpar os seus rastros de destruição, a gente passa a sujar com amor: "estou usando esse prato aqui, mas vou deixar ele já na máquina para facilitar o NOSSO trabalho depois." Ninguém fica sobrecarregado, exausto, exaurido. As responsabilidades são partilhadas. Parece utopia, mas é bem simples.  

Veja que não é o trabalho da fulana ou do ciclano, é o NOSSO trabalho. Isso muda tantas coisas. Muda a perspectiva, a vida comunitária, sexual, psicológica. Enfim, uma coisa maravilhosa. Altamente recomendável! 

O segundo ponto é que, a sua casa (seu oikos) nada mais é que uma versão nano da sua vida na cidade e no país. 

Como esperar uma estrutura mais igualitária e justa de um país quando o trabalho na sua casa é terceirizado a preço de banana e com muita exploração?

A gente sabe que o assunto é complexo, e que a carga de trabalho doméstico geralmente cai em cima de um braço só - das mulheres, das mães... todas com uma determinada cor e um determinado endereço no google maps.

Limpeza é um trabalho sujo em vários níveis. Ele é repassado de uma mulher exausta para outra, que por necessidade, sujeita-se a uma jornada longa e mal paga de trabalho.

Quando entrei para a faculdade, a minha mãe começou a me pressionar para arranjar um trabalho de meio período e "me bancar" enquanto estudava. Eu disse que aceitaria fazer a limpeza da nossa casa (sempre gostei de limpar), assim não teria a questão do deslocamento e meus estudos não ficariam comprometidos. 

A minha família ficou tão horrorizada pelo simples fato de eu sugerir essa ideia, que o assunto "trabalhar para se bancar" nunca mais foi mencionado, e pude estudar em paz. 

O horror não estava no fato de fazer a limpeza em si, acho, mas antes na minha ousadia e loucura de pensar em ser remunerada com um trabalho tão "humilhante". Era quase prostituição. 

A menina da zona sul ganhando dinheiro limpando casa? A mãe pagando para ela fazer tal trabalho? Que horror! Uma exploração dupla. 

Essa foi uma lição que aprendi rapidinho. A diferença entre indivíduos. Aquele que suja não pode limpar e vice-versa. 

Entende como é político limpar a sua merda? Significa ir de encontro a essa mentalidade hierárquica, "Casa Grande & Senzala", à l'ancient regime que já deu. Gente já deu!

Vou fazer um a parte aqui. Eu realmente gostaria imensamente que homens lêem-se esse texto. Para ver se a ficha cai: essa é uma questão estrutural. Que "Caga" tudo. Quer lutar por uma país melhor? Passar horas debatendo política e economia? Quem está limpando a sua privada?

Por falar nisso, a desculpa que mais escuto para terceirização da limpeza é "eu trabalho demais", "não tenho tempo". Eu sei da conveniência dessas justificativas. Já usei tanto. E vou dizer: não convence ninguém, nem a gente mesmo. 

Limpar dá trabalho e não não há quem dê conta de fazer tudo sozinho. Por isso, vou concordar com a sogra francesa: "cada um deveria limpar a sua merda".

E, digo mais: se você estiver limpando merda de terceiros, seja lá qual motivo tiver, saiba que está prestando um serviço que devia custar caro, muito caro, pois é o primeiro lugar onde aprendemos sobre política. 

Vive la revolution!

Compre um cafezinho para minha pessoa aqui em baixo.

Cafezito

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